Com a palhaçaria, ACE conscientiza comunidade sobre o mosquito da dengue

Nome: Fábio Sousa
Endereço: Horizonte / Ceará

Sou Agente de Combate a Endemias (ACE), na cidade de Horizonte, no Ceará, desde 1996. As pessoas me conhecem como o PalhaSUS Horizontino, porque utilizo a palhaçaria como base de meu trabalho na comunidade. A arte entrou em minha vida e no meu trabalho em 2009. Foi nessa época que a assistente social Janaina, da Secretaria Municipal da Saúde, falou com os coordenadores da Endemias que estava precisando de alguns profissionais para um projeto. Ela queria pessoas que gostassem de arte, de trabalhar com educação em saúde de maneira mais criativa e dinâmica.

Meu chefe logo lembrou de mim porque eu já havia conversado com ele sobre como gostava de falar com as pessoas com uma linguagem mais popular para que entendessem a importância de nosso trabalho. Ele me indicou para Janaina, que me explicou que estava montando na Secretaria Municipal de Saúde um núcleo chamado Prevenção e Saúde nas Escolas. O objetivo era trabalhar com jovens da cidade varias temáticas, entre elas o uso consciente do preservativo para o sexo seguro, usando o teatro.

O Auto da Camisinha”

Eu não tinha qualquer vivência teatral, mas tinha vontade de aprender. Janaína me deu o esquete O Auto da Camisinha, de autoria de José Mapurunga, e disse “faça da melhor forma que conseguir e nós vamos dar o suporte que precisar”. Falei com algumas amigas que eram Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) e gostavam de teatro. Formamos um grupo para montar o esquete que usava a linguagem de Cordel. A Secretaria nos deu um espaço maravilhoso para os ensaios, figurino, maquiagem e até cenário. Esse último dispensei porque nossa ideia era encenar nas praças, ruas e escolas.

Nas escolas, os alunos adoravam nossas apresentações. Claro que tinham também os conservadores que confundiam os valores e enxergavam nosso trabalho como incentivo à prática precoce do sexo.

Mas seguimos em frente com nosso propósito educacional de falar sobre a sexualidade, a importância de usar corretamente o preservativo. Em 2014, eu já estava totalmente envolvido com o núcleo Prevenção e Saúde nas Escolas e não voltei mais para o trabalho tradicional no controle de Endemias. Foi neste ano, inclusive, que inscrevemos, sem qualquer pretensão, O Auto da Camisinha, na 4ª Mostra da Saúde, realizada em Brasília, onde nos apresentamos. Eram mais de 2 mil projetos inscritos, os 100 melhores foram selecionados e conquistamos o 12º lugar. Ficamos felizes demais. Além disso, foi nesse evento que descobri que a palhaçaria seria meu caminho.

Um palhaço começou a olhar para mim”

Durante a 4ª Mostra da Saúde, eu estava em uma das tendas quando um palhaço começou a olhar para mim. Ele me encarava, parado. O olhar dele me atravessou e eu fiquei como hipnotizado. Depois, ele saiu brincando pelo evento. Descobri que o palhaço era interpretado pelo médico Aldenildo Costeira, coordenador do projeto PalhaSUS, da Paraíba, que atua como uma oficina do riso por meio da qual as pessoas descobrem seus palhaços educadores. E foi isso que aconteceu comigo.

A imagem dele me encarando não saiu da minha cabeça, assim como suas intervenções e o jeito que ele interagia com as pessoas na mostra. Achei que poderia usar a palhaçaria em meu trabalho no núcleo de Prevenção e Saúde nas Escolas. Como não tinha qualquer experiência como palhaço, decidi estudar. Fiz um ano de curso sobre palhaçaria em uma escola de teatro, em Fortaleza. Depois, entrei na faculdade e cursei Licenciatura em Teatro no Instituto Federal do Ceará. Conclui a Licenciatura em 2020 e não parei mais. Agora, estou fazendo mestrado profissional em artes (IFCE), e meu objeto de pesquisa é o meu palhaço.

O palhaço, na verdade, é nossa criança interior”

Estudando, aprendi que o palhaço, na verdade, é nossa criança interior, brincando no picadeiro com o público. Portanto cada um precisa descobrir o seu palhaço. Inicialmente, batizei meu palhaço de PalhaSUS Horizontino, em homenagem ao PalhaSUS da Paraíba. Antes, conversei com o Aldenildo, que me inspirou e me fez descobrir a palhaçaria.

A partir de 2021, fiz algumas mudanças: meu projeto passou a se chamar PalhaSUS Horizontino e meu palhaço ganhou o nome de Binho. Assim, fui seguindo com as apresentações nas escolas, ruas, praças e empresas, mesmo depois que o núcleo de Prevenção e Saúde nas Escolas foi descontinuado, em 2014, e precisei voltar para Endemias. Isso porque o secretário de saúde já conhecia meu trabalho e achou que eu deveria continuar a conscientizar as pessoas sobre o mosquito Aedes aegypti por meio da arte/educação.

Os palhaços nunca invadem, eles se conectam com o ambiente através do seu olhar de 360º

E assim, segui com minha dramaturgia, em que uso improvisação e envolvo bastante o público, com brincadeiras, perguntas, interações e humor. Os temas estão sempre alinhados ao trabalho educacional de Endemias sobre o mosquito Aedes Aegypti transmissor da Dengue, Zika, Chikungunya. Rindo e brincando, as pessoas vão aprendendo o nome do mosquito, de onde ele veio, quais doenças transmitem e como evitá-las.

Durante a pandemia, em 2020 e 2021, minhas apresentações como palhaço pararam e eu me reinventei. Fui fazer educação em saúde por meio de lives nas redes sociais e intervenções nas praças, utilizando um megafone para falar de Covid-19 e dengue. Agora, com as pessoas vacinadas e a pandemia mais controlada, voltei a atuar com o Binho nos espaços onde sou convidado porque os palhaços nunca invadem, eles se conectam com o ambiente através da sua peculiaridade de observação milenar e o sorriso das pessoas é o convite para abertura da fresta mágica da brincadeira.

Quando olho minha trajetória, fico feliz em ser um ACE e ter tido a oportunidade de reinventar a atividade, preservando o objetivo de conscientizar as pessoas sobre os perigos do mosquito da dengue e, ao mesmo tempo, fazer o trabalho de maneira lúdica, com arte e diversão. Mas até chegar a esse ponto, trilhei uma jornada nem sempre fácil, foi preciso conquistar esse lugar.

Decidi que seria um ACE.”

Meu primeiro contato com o trabalho de um Agente Comunitário de Endemias (ACE) foi por intermédio do ACE Walter que visitou minha casa, em 1996, para fazer seu trabalho. Ele explicou como estava a infestação do mosquito Aedes Aegypti, em meu bairro. Depois, olhou o quintal e, em seguida, entrou em casa, verificou o banheiro, a cozinha, os quartos. Por último, verificou a cacimba e os depósitos de água. Foi olhando parte por parte para ver se não tinha foco do mosquito.

Eu achei o trabalho muito interessante não só pela abordagem dele, mas como uma oportunidade profissional para mim. Eu tinha 18 anos na época, tinha acabado de concluir o Ensino Médio e estava doido para trabalhar e as oportunidade de emprego, naquela época, em Horizonte eram muito escassas. Perguntei como fazia para entrar naquela profissão. Walter explicou que era por meio de seleção na Secretaria Municipal de Saúde e que para saber quando teriam vagas era preciso perguntar. Decidi que seria um ACE. Todos os dias eu acordava e minha primeira tarefa de manhã era ir até a Secretaria para perguntar se tinha vaga. Seis meses se passaram até que um dia ao chegar no portão da Secretaria, o rapaz nem esperou eu entrar, já saiu e disse “corra para se inscrever que estão com vagas para trabalhar na Endemias”. Fui logo fazer a inscrição!

Com meu salário, enchíamos quatro carrinhos de supermercado”

Eram 8 vagas e cerca de 100 inscritos, todos homens, porque naquela época, não houve abertura de vagas para mulheres. A prova de seleção era de conhecimentos gerais e eu passei. Foi muito bom. Minha família estava passando por uma fase difícil, meu pai estava desempregado e minha mãe mantinha a casa com seu trabalho de costureira. Lembro que com meu salário, enchíamos quatro carrinhos de supermercado. Ser aprovado na seleção para ACE foi como se eu tivesse passado em um vestibular!

Antes de ir trabalhar em campo, fizemos uma semana de capacitação com um profissional da Fundação Nacional da Saúde. Ele nos explicou que o ACE trabalha por imóveis e, portanto, precisa entrar em terrenos baldios, casas, cemitérios, estabelecimentos comerciais. Para entrarmos em uma casa, era preciso que os responsáveis pelo imóvel estivessem presentes. Também nos ensinou a fazer o trabalho em sequência, começando pelo quintal antes de entrar na residência, igual o ACE Walter tinha feito em minha casa, antes de eu conhecer a atividade.

O início foi muito difícil”

Chegou o dia de começar o trabalho de verdade. Fui designado para Preaoca, uma região rural distante 20 quilômetros de minha casa. Ganhei o uniforme e uma bolsa tiracolo grande onde carregava cerca de meio quilo de larvicida – distribuído em saquinhos de 100 gramas – , além da lanterna, o pesca larva e outros itens do kit de trabalho. A bolsa era pesada e o ombro doía. Não tinha transporte ou alimentação e o chefe avisou que precisava estar na primeira casa às 7h30. Ele era muito rígido e ainda disse que se chegasse na área e eu não estivesse lá, eu teria o dia descontado.

No primeiro dia, fui de bicicleta e na hora do almoço acabei fazendo um lanche improvisado em mercearias da comunidade. Percebi que no decorrer dos dias era melhor levar minha alimentação na bolsa. O início foi muito difícil. Trabalhei sozinho na primeira semana, não conseguia me localizar direito no mapa que me deram e acabei me perdendo na região. Eu olhava para o mapa e os imóveis não batiam, mesmo assim eu trabalhava nos imóveis errados e tentava fazer da melhor forma possível. Ficava muito apreensivo com as ameaças do chefe de cortar meu ponto e me demitir. Depois de um mês, eu consegui aprender como o trabalho funcionava e conquistar a confiança das pessoas da região.

Eu tinha vontade de fazer coisas diferentes e não podia”

Meu chefe era muito rígido, o trabalho do ACE é muito sistemático e não combinava com meu perfil dinâmico. Eu tinha vontade de fazer coisas diferentes e não podia. Além disso, eu me sentia inseguro em um trabalho avulso, em que não tínhamos previdência ou qualquer outro direito. Se ficasse doente, por exemplo, não tinha assistência ou abono das faltas.

Tudo isso foi me cansando e decidi sair e procurar outro trabalho. Era o ano de 1999 e algumas indústrias estavam chegando em minha cidade. Comecei a distribuir currículos, mas somente em 2001 é que consegui emprego em uma fábrica de sapatos. Fiquei dois anos nessa empresa, onde a pressão psicológica e o assédio moral eram tão grandes que senti saudades da rigidez do meu chefe na Endemias. Mas eu pensava: preciso do trabalho, a pressão dos supervisores é grande, mas vou fazer de conta que essas pessoas não existem.

Mal sabia eu que a Endemias seria porta para a palhaçaria entrar e transformar minha vida“

No final de 2002, a Prefeitura de Horizonte publicou um edital para contratar Agentes Comunitários de Saúde (ACS). Decidi concorrer porque nessa função poderia trabalhar com famílias e perto de casa. Fiz a prova e passei. Durante a prova, achei um pouco estranho que todos os antigos colegas que tinham trabalhado comigo na Endemias estavam na sala prestando a mesma seleção. Todos nós passamos e veio a surpresa: apesar do edital estar escrito ACS, nós íamos trabalhar como ACE!

Aí eu pensei, vou precisar voltar para aquele trabalho sistemático, mas como já tinha saído da empresa de sapatos e precisava trabalhar, o jeito foi aceitar. Mal sabia eu que a Endemias seria a porta para a palhaçaria entrar e transformar minha vida.