O desafio no começo era combater a cólera

Nome: Roque Onorato Santos
Endereço: Valença / Bahia

Aos 83 anos e com muita vitalidade, Roque Onorato Santos, ACS em Valença, na Bahia, é uma das referências entre os Agentes Comunitários de Saúde de seu estado e do Brasil

Em novembro de 1991, quando fui prestar o teste para ser Agente Comunitário de Saúde (ACS) no município de Valença, na Bahia, o trabalho era uma novidade, a função tinha acabado de ser anunciada na cidade. Eu, a exemplo dos demais que estavam fazendo a prova, tinha apenas a informação de que era um contrato de um ano e meio e que nosso desafio era combater a cólera que assolava não só Valença, mas o país.

Na ocasião, eu estava em uma fase difícil de trabalho. Depois de 10 anos como servidor público, eu havia pedido exoneração do cargo de administrador do abatedouro municipal. Fui em busca de outros caminhos porque a família cresceu e meu salário nesse serviço público era insuficiente. Trabalhei como pedreiro e, depois, com peles bovinas. A oportunidade de me tornar ACS mudou minha vida porque sempre gostei de fazer trabalhos sociais. Inclusive, já participava trabalhos voltados a população carente na Igreja Católica e, nesse sentido, sou muito grato ao Padre Edgar de Souza Junior, que sempre me ajudou e hoje atua no continente africano.

Uma região paupérrima, onde as pessoas não aceitavam nosso trabalho”

Passei em primeiro lugar no concurso. Depois veio o treinamento de quase sete meses e em 13 de julho de 1992, teve início a atividade em campo. Lembro até hoje de meu primeiro dia de trabalho, que foi fantástico. A maioria das pessoas já me conhecia e conforme eu aplicava o que aprendi no treinamento, fui me sentindo acolhido. Mas havia um desafio concentrado em uma avenida com pouco mais de 30 casas, uma região paupérrima, onde as pessoas não aceitavam nosso trabalho. E, justamente, era essa comunidade que mais precisava.

Encarei o desafio. Pedi emprestado um salão que era do proprietário das casinhas da comunidade e comecei a chamar pessoas capacitadas – médicos e enfermeiros – para fazer palestras sobre temas de saúde e higiene pessoal. Uma vez, trouxe uma mastologista para falar sobre câncer de mama e graças a essa iniciativa dois casos foram diagnosticados e tratados. Com o tempo e como sempre me dediquei a estudar, senti que estava preparado para assumir as palestras. Comecei a falar sobre saúde da mulher, da criança e do homem.

Eu sempre pautava os temas pelos problemas que percebia na comunidade, como questões de gravidez na adolescência. No final de cada evento gostava de perguntar para as pessoas participantes que temas gostariam de ter nos próximos encontros. Também contei com ajuda das enfermeiras, que eu convidava para assistir os encontros e, depois, me dizer se eu tinha ido bem, no que precisava melhorar. Com o tempo, colégios e associações começaram a me convidar para ser palestrante e meu trabalho foi crescendo. Na época em que o vírus HIV e a Aids apareceram, falei muito sobre o tema.

Em apenas 8 meses, a cura de 73,1% das pessoas acometidas por tuberculose”

Mas um dos projetos que mais chamaram atenção e pelo qual fui, inclusive, convidado a expor em Salvador pela Associação Brasileira de Médicos, por meio da Secretaria de Saúde do Estado, foi minha atuação com meus colegas ACSs no combate à tuberculose. Foi um evento que reuniu na capital baiana, iniciativas de sucesso na saúde. O projeto que realizamos, em 1997, em Valença alcançou em apenas 8 meses, a cura de 73,1% das pessoas acometidas por tuberculose.

Um dos problemas no município era que as pessoas eram diagnosticadas com a doença no posto de saúde, recebiam o remédio, mas não tomavam porque, além de causar náusea, o gosto era muito forte. Para amenizar esses efeitos, era preciso tomar o remédio com leite ou suco de laranja. Mas a população era muito pobre e não tinha acesso a esses alimentos. Outro agravante, eram as pessoas que escondiam ter a doença para não sofrer preconceito.

Decidi arrecadar alimentos com comerciantes locais. Falei com todos e com ajuda de minha esposa e filhos, arrecadávamos e distribuíamos a quem estava doente e mais precisava. Simultaneamente eu explicava o quanto era importante tomar o remédio para ficar curado. O curioso é que antes desse trabalho, eu havia sido convidado para fazer parte do projeto formado pelo Consórcio dos Municípios do Vale do Jiquiriça, do qual Valença faz parte. A iniciativa tinha como objetivo melhorar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) nessa região. Fui destacado para fazer parte do grupo de combate a tuberculose.

Só o nosso projeto mais simples foi o que alcançou resultados”

Depois de cinco reuniões e o desenho de um projeto muito grande que eu sabia que não daria certo, deixei o grupo, chamei quatro ACSs e começamos a trabalhar com a arrecadação e distribuição de alimentos e conscientização das famílias. Só o nosso projeto mais simples foi o que alcançou resultados. E foi assim que no evento em Salvador, expliquei como conseguimos por meio da solidariedade e conscientização, sem usar um só centavo do dinheiro público, combater com sucesso a tuberculose. Seis meses depois, o Conselho Municipal de Saúde decidiu a distribuir alimentos para a população carente e isso permanece até hoje.

Outro trabalho que considero muito importante é vacinar a população. Tenho muito orgulho de ter recebido moção de aplauso por ser considerado pela comunidade um grande mobilizador de vacinação. Nos dias de vacinação, além de falar sobre a importância da imunização para crianças e adultos, acompanhava as vacinadoras, carregando caixas de isopor, com doses de vacinas até as regiões onde havia pessoas que tinham dificuldade de se locomover até a Unidade Básica de Saúde.

Meu engajamento na luta pela valorização e dignidade do ACS”

Outro lado que considero importante em minha história como ACS está relacionado a meu engajamento na luta pela valorização e dignidade do ACS. Participei com os colegas, porque ninguém faz nada sozinho, da criação da Associação de ACS de Valença, em 1994, a primeira da Bahia, que deu origem a nosso sindicato atual, para que pudéssemos ter condições de reivindicar direitos. Éramos 101 profissionais na ocasião e eu trabalhei na Comissão de Organização. Depois formei uma chapa e fui eleito presidente.

O próximo passo foi lutar para que os diversos municípios da Bahia criassem a Federação dos ACS, em 1998, da qual fui o primeiro presidente. Depois nos organizamos, na Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde e Agentes de Endemias (Conacs). Fui vice-presidente no primeiro mandato da Conacs e presidente no segundo.

É preciso estudar e se atualizar”

Informação é matéria-prima de nosso trabalho. Por isso, é preciso estudar e se atualizar. Sempre aproveitei todas as oportunidades de cursos. Quando criança estudei apenas até o 5º ano primário. Naquela época, em 1953, era preciso prestar o exame de admissão para prosseguir com o Cientifico. Nessa ocasião eu até ganhei uma bolsa para ir completar os estudos em Salvador. No entanto, minha família não teria como me manter na capital e eu precisei parar de estudar para trabalhar. Mas mesmo enquanto estudava, eu sempre ajudei meu pai no trabalho, vendendo lenha no contraturno da escola.

Minha mãe morreu quando eu tinha apenas 4 anos e meu pai, quando eu tinha 15. Já com essa idade morei sozinho e me sustentava com meu trabalho, primeiro como pedreiro e depois em uma olaria. Os parentes moravam longe e eu queria continuar em Valença. Apesar de não ter completado os estudos, sempre gostei de ler revistas, jornal, história em quadrinhos, livros. Depois no trabalho social na Igreja e como ACS apareceram oportunidades de cursos e eu sempre aproveitei todos!

Continuo ativo e sempre próximos dos ACSs”

Hoje estou com 83 anos e em 2009 chegou o momento da aposentadoria. No entanto, continuo ativo e sempre próximos dos ACSs. Faço parte do grupo Mobiliza SUS, iniciativa que adota metodologias participativas, com o objetivo de potencializar a capacidade de resposta local e regional para a gestão participativa e o controle social no SUS. Também trabalho como ACS voluntário, quando pessoas precisam de orientação, elas me procuram. Não deixo ninguém sem resposta. As vezes são questões para levar ao Conselho Municipal da Saúde do qual sou conselheiro.

Para as novas gerações de profissionais, acho que há três coisas que sempre serão fundamentais para o trabalho: conquistar a credibilidade da comunidade; ter muita vontade de fazer; e nunca dizer que vai resolver, mas que vai tentar ajudar da melhor maneira possível, lembrando que a solução não depende só de você.