Endereço: São Paulo / São Paulo
Marta Sanches é Agente Comunitária de Saúde, em Vila Piauí, na região Oeste de São Paulo, e considera o encontro com a profissão um marco em sua vida
Eu estava na porta de minha casa, em um dia de 2001, quando colocaram um cartaz em um poste que me chamou a atenção. Fui ver mais de perto o que era e lá dizia que estavam abertas as inscrições para seleção de Agente Comunitário de Saúde (ACS). Eu era dona de casa e atuava como voluntária na Pastoral da Criança, na Igreja do meu bairro, na Vila Piauí, região Oeste de São Paulo. Fiquei interessada, até arranquei o cartaz do poste – que guardo até hoje – e comecei a pesquisar sobre o que era um ACS.
Logo me identifiquei com a atividade porque na Pastoral eu realizava visitas quinzenais a famílias para verificar o peso das crianças e, quando necessário, orientar a ingestão da multimistura, um composto para combater a desnutrição. Assim, quando vi que o ACS trabalhava com a saúde da comunidade, pensei: esse trabalho vai ser meu!
Fiz a inscrição, a entrevista e passei. Na época foram 24 selecionados para atuar na região da Vila Piauí. Por sinal, a experiência na Pastoral da Criança ajudou muito a mim e a minha amiga Elisa na prova de seleção. Nós duas tivemos os melhores desempenhos. Por causa do trabalho na Pastoral já conhecíamos assuntos relacionados à alimentação, higiene, desinfecção, separação de lixo. Este último, inclusive, foi o tema da redação do processo seletivo para ACS.
“Nossa movimentação deu resultado”
Passamos na prova, já tínhamos até feito o exame médico de admissão e aberto conta no banco, quando veio a notícia de que a prefeitura, à época a gestão era da Marta Suplicy, tinha cancelado a estratégia de saúde da família na minha região porque estávamos na divisa com o município de Osasco, onde esse atendimento seria maior.
Demos início a uma luta que durou dois anos. Tivemos apoio da comunidade e do Padre Mario, da nosso paróquia, que reconhecia a necessidade de manter o projeto na região, entre outras razões, pelo número de idosos. Também fomos orientados pelo vereador Augusto Campos a fazer um abaixo assinado. O próximo passo foi conseguir uma reunião com o secretário municipal da saúde, Gonzalo Vecina Neto. Nossa movimentação deu resultado e quinze dias depois dessa reunião fomos informados da contratação e início do trabalho.
Já gostei e me identifiquei muito com o trabalho desde o início. Além disso, ter uma profissão fez com que eu resgatasse minha autoestima e dignidade. Na época, eu tinha 41 anos, hoje estou com 61 e o amor pela atividade do ACS só aumentou com o tempo. Inicialmente tivemos um treinamento ministrado pela prefeitura, no qual recebemos informações sobre como lidar com as pessoas, se comportar em uma visita e atuar com ética. Depois de 15 dias, começamos a trabalhar em campo, fazendo o cadastro dos moradores, cada um na rua onde morava. Hoje, infelizmente, o ACS não recebe esse treinamento e já é colocado direto para trabalhar em campo.
“Logo no início, passei por um caso que me chocou”
Logo no início, passei por um caso que me chocou. Visitei uma família para realizar o cadastro em que a mãe da dona da casa era uma senhora idosa que era deixada deitada no box do banheiro, sobre um tapete de sisal. Em virtude da idade avançada, ela tinha incontinência urinária e o genro argumentava que isso era necessário porque ele não queria sentir o cheiro de urina pela casa. Voltei chorando para minha Unidade Básica de Saúde (UBS) e comuniquei o caso a nossa enfermeira.
No dia seguinte, acompanhada da enfermeira e do médico da UBS, fiz nova visita à família. Chegamos por volta das 10h e a idosa continuava na mesma situação, com o agravante de não ter sido alimentada até aquele horário. O genro e a filha da idosa foram orientados que não poderiam manter a senhora naquela situação, que ela precisava ser tratada com dignidade. No final, a família mudou de região para fugir da responsabilidade, escolhendo um local onde a estratégia de saúde da família ainda não tinha chegado.
Esse caso nunca saiu da minha cabeça e tive contato com outras histórias também muito tristes, como de filhos que usam o dinheiro da aposentadoria dos pais em benefício próprio; de idosos que são espancados por membros da família. São casos que direcionamos para a assistente social, mas que deixam marcas também no ACS. Por essa razão é que comecei a defender que o ACS tivesse atendimento psicológico para lidar com a carga emocional pesada de situações como essas. Foi assim que foi implementado em nossa área o programa Quem cuida do cuidador, direcionado ao ACS, com reuniões semanais acompanhadas por um psicólogo. Mas o programa, apesar de importante, foi descontinuado depois de um período.
“Fui convidada pelo sindicato para trabalhar no atendimento aos colegas ACS”
Sempre fui muito questionadora e participante do sindicato. Para alguns isso é uma qualidade e para outros um incômodo. Depois de 10 anos como ACS, atendendo diretamente as famílias, fui convidada pelo sindicato para trabalhar no atendimento aos colegas ACS, como diretora de base das 40 UBS da região Oeste de São Paulo. Para as senhoras da comunidade que eu atendia expliquei que, dessa forma, eu poderia contribuir para que os agentes atendessem ainda melhor a comunidade.
Em 2017, tivemos eleições e fiz parte da chapa de oposição como diretora financeira. Vencemos o pleito. Naquele ano tivemos a reforma trabalhista e o sindicato perdeu algumas verbas, como o imposto sindical. Mas eu acredito que o sindicato, como acontece hoje, deve se manter com os recursos que vem dos filiados. Assumi a diretoria financeira, mas não deixei de fazer o trabalho com os ACS da base. Dei continuidade às reuniões, orientações sobre os direitos, resultados das convenções coletivas.
Além disso, como sindicalista, eu continuo a insistir na necessidade do atendimento psicológico para os ACS. Nesse sentido, fizemos parceria com uma clínica psicológica para prestar esse tipo de atendimento aos ACS filiados. Mas é muito difícil o ACS conseguir liberação de horário para ir até a clínica. Além disso, mesmo quando obtém permissão para o atendimento, precisa repor as horas depois e isso somado a pressão pelo cumprimento das metas dificulta ainda mais que o ACS procure o atendimento. O ideal seria contar com esse benefício durante a rotina do trabalho.
“Um cenário diferente da maioria das demais regiões”
A capital paulista tem um cenário diferente da maioria das demais regiões porque o ACS trabalha em regime CLT contratado por Organizações Sociais (OS). No interior de São Paulo, o ACS têm vínculo com a prefeitura. O vínculo com a OS, em minha opinião, descaracteriza a função do ACS. A OS impõe um sistema de controle por metas de 100% do número de visitas mensais. Assim, o ACS precisa cumprir 200 visitas por mês. Com isso, às vezes, fica difícil fazer um trabalho com o olhar mais apurado para os problemas de cada família e atuar no sentido de construir um vínculo com a comunidade.
Com esse modelo, bater as metas tornou-se o maior desafio do ACS hoje em São Paulo. Se o profissional não cumpre a meta é penalizado. Embora, a existência de metas não seja uma novidade na profissão, ocorre que antes era aplicada de modo diferente: 85% da meta era relacionada às visitas e 15% à dedicação a grupo educativo, treinamento e trabalho administrativo.
O vínculo com a OS também tem impacto em outras questões. Por exemplo, tivemos a aprovação da emenda 120 que determinou o piso de dois salários-mínimos para a categoria. Mas como o ACS de São Paulo não está vinculado diretamente à prefeitura, foi preciso negociar muito com governo e OS, chegamos a fazer uma paralisação, para que esse direito também contemplasse os 10 mil ACS da capital paulista.
“Acho que existe a Marta de antes e depois do encontro com a profissão de ACS”
No meu caso, o trabalho de ACS trouxe tudo de melhor em minha vida: dignidade, humanidade, o olhar ao outro, o interesse de ver o bem-estar do outro e se incomodar com a situação da comunidade. Acho que existe a Marta de antes e depois do encontro com a profissão de ACS. Gosto muito do que faço no sindicato e, ainda mais, da atuação como ACS raiz que tive a oportunidade de vivenciar.
Atualmente, vejo muitos jovens ingressando na carreira como algo provisório, apenas enquanto conclui a faculdade, por exemplo. Mas esse profissional não vai ser um ACS de verdade porque não terá tempo suficiente para conhecer as famílias, criar vínculo, entender de verdade os problemas e, de fato, atuar em prol da saúde física e emocional dessas pessoas. O ACS é um profissional diferenciado na área da saúde. Ele precisa gostar de lidar com pessoas e ter interesse genuíno em contribuir com a saúde e qualidade de vida da comunidade onde atua.