Cristiane foi a primeira mulher do interior do Ceará a atuar como Agente de Combate às Endemias

Nome: Cristiane Eleutério Freire Ibiapino
Endereço: Tianguá / Ceará

Em um tempo em que a nomenclatura Agente de Combate às Endemias ainda não existia, o trabalho de combate à dengue e outras doenças era realizado pelos guardas da Sucam. E foi como guarda da Sucam que Cristiane Eleutério Freire Ibiapino entrou na profissão em 1998

Sou Agente de Combate às Endemias (ACE) desde 1998 e considero que minha entrada nessa profissão foi um presente de Deus. Naquela ocasião, eu estava em uma situação muito difícil. Casada e mãe de um filho de 9 meses, precisei vender meu pequeno comércio, morava de aluguel e tive que entregar o imóvel ao proprietário. Desempregada e com os recursos da venda do meu comércio acabando, eu ganhava algum dinheiro vendendo ovos e galinhas. Minha esperança era conseguir um trabalho na empresa de calçados do município que estava contratando. Eu tinha Ensino Médio completo como pediam. Por sinal, todos em casa estudaram porque meus pais, que tiveram seis filhos, sendo que, infelizmente, um deles faleceu, e mal sabiam ler e escrever, sempre enxergaram o estudo dos seus cinco filhos como prioridade. Eles vieram de Sobral, no sertão do Ceará, para Tianguá. Como filha mais velha, comecei a trabalhar muito cedo, desde os 8 anos de idade, para ajudá-los a criar meus irmãos mais novos e abdiquei do sonho de estudar Direito.

Na seleção da empresa de calçados, passei em primeiro lugar na prova. No entanto, não pude assumir a função porque eu tinha 23 anos e a idade mínima que eles exigiam era 25. Argumentei com dono, expliquei minha situação, pedi uma oportunidade, mas não teve jeito. Lembro a data até hoje. Era uma quarta-feira, 22 de abril de 1998. Sem enxergar uma saída, encostei minha bicicleta na praça principal da cidade, sentei na calçada e comecei a chorar. Neste momento, um senhor, cujo rosto não consigo lembrar, chegou em uma bicicleta azul, vestindo camisa branca e calça jeans. No pé uma sandália havaiana, com solado e correias azuis. Em minha memória estão todos esses detalhes, mas não consigo lembrar do rosto dele.

Vá até o posto de saúde de Tianguá, que estão com inscrições para guarda da Sucam”

Ele perguntou por que eu chorava. Expliquei e ele disse: “Seu emprego não está nesta empresa de calçados. Vá até o posto de saúde de Tianguá, que estão com inscrições para guarda da Sucam”. Em 1998, a nomenclatura ACE ainda não existia, os profissionais que combatiam as endemias eram os guardas da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam). Eu disse para ele: “Eu, guarda da Sucam?”. O senhor respondeu firme: “Enxugue essas lágrimas e vá até lá.” Obedeci. Pedalei até o posto, que fica atrás da Igreja Matriz, uma distância de 500 metros de onde eu estava.

Cheguei no posto às 16h45 e as inscrições terminavam às 17h. Fui atendida pelo Evânio. Ele disse que eram sete vagas e que a exigência era saber ler e escrever e ter concluído a 5ª série. Perguntei se havia alguma restrição à inscrição de mulheres e ele respondeu que, de fato, só homens tinham feito inscrição, mas formalmente não havia proibição a mulheres. Entreguei as cópias de meus documentos e fiz minha inscrição. A prova aconteceria na sexta-feira, ou seja, em três dias. Perguntei o que deveria estudar e o Evânio disse que bastava saber ler, escrever e fazer contas. Ao chegar em casa naquele dia, minha família estava aguardando novidades em relação à empresa de calçados. Foram logo perguntando se eu havia passado na prova a que respondi: “passei, mas não fiquei. Vou ser guarda da Sucam!

No dia da prova estávamos em apenas quatro mulheres da Serra de Ibiapaba que é composta pelos municípios de Carnaúbal, Croatá, Guaraciaba do Norte, Ibiapina, São Benedito, Tianguá, Ubajara e Viçosa do Ceará. Da Serra de Ibiapaba eu fui a única mulher a ser aprovada. E considerando meu município, Tianguá, passei em segundo lugar. Com isso, fui a primeira mulher a ocupar a posição de guarda da Sucam no interior do Ceará. Até aquele momento, apenas na capital, em Fortaleza, havia mulheres como guardas da Sucam e eram apenas seis.

E lá estava eu e 13 colegas, todos homens, no primeiro dia de trabalho”

Assumir o posto não foi simples. Eu me apresentei em 2 de maio, como foi determinado, e pediram para eu retornar dia 12. Neste dia, ao chegar, soube que minha vaga seria ocupada por outra pessoa indicada por um político. Não me conformei, cobrei meus direitos às autoridades, falei com o prefeito e, no final, tiveram que cumprir o que era justo. Eu assumi meu posto em 13 de maio. Conheci a profissão na prática porque, antes de me tornar um deles, eu só sabia que os guardas da Sucam usavam roupa na cor caqui e capacetes de alumínio e quebravam os potes das pessoas para evitar o acúmulo de água e o foco de mosquitos da dengue.

E lá estava eu e 13 colegas, todos homens, no primeiro dia de trabalho. Os primeiros 15 dias foram de treinamento teórico. Depois começou a parte prática que meus colegas duvidavam que eu ia aguentar. E as coisas não eram fáceis para mim. Eu recebia as tarefas mais difíceis. No treinamento prático tivemos que subir a caixa de água do Serra Grande Hotel, a mais alta e maior da região, com 50 mil litros. Subíamos sem qualquer equipamento. Depois era preciso entrar, dentro da caixa d’água, que chegava próxima à cintura para tirar a tampa e medir. Da turma, fui a primeira a cumprir a prova. Só três conseguiram e eu fui um deles. Eu sabia que como única mulher do grupo, não tinha espaço para falhar. Mas aos poucos os colegas homens foram se acostumando com minha presença. A comunidade também estranhava o fato de uma mulher ser guarda da Sucam. Acho que foi mais difícil a aceitação da comunidade do que dos colegas de trabalho.

Diferentemente do que ocorre hoje com os ACEs, que atuam em zonas determinadas, nós trabalhávamos por campanhas, cobrindo áreas distantes. O carro-chefe era o combate à dengue, mas também tinha a febre amarela, a leishmaniose, doença de chagas. Quando a equipe que eu trabalhava ia, realizar o mesmo na zona rural do município, saia todos os dias às 5h de casa e voltava a noite. Contei com ajuda de meus pais para cuidar de meus dois filhos. Em uma ocasião, fui com mais seis colegas trabalhar na localidade do Letreiro, zona rural (Sertão) do município. Hoje dá para chegar de carro até lá, mas na época tínhamos que pegar um ônibus para descer a serra até a localidade de Saco (hoje Distrito de Bela Vista). A partir desse ponto, o trajeto era de bicicleta ou a pé, por mais seis quilômetros em chão batido de terra até o Distrito de Arapá. Depois, o meio de transporte eram os jumentos até o pé da serra, quando desmontávamos, colocávamos os materiais e equipamentos de trabalho nos animais que iam sendo puxados para subir.

Apesar das dificuldades, acabei me apaixonando pela profissão”

Neste dia, em Letreiro, terminamos a última casa só às 17h30 e ainda precisávamos lavar todos os materiais. Resultado: descemos a serra, mas perdemos a carona prevista. O jeito foi ir de jumento até Arapá, onde devolvemos os animais. O caminhão que nos levaria até Bela Vista já tinha passado e foram seis quilômetros a pé até Bela Vista. Os atrasos foram se acumulando no trajeto. Em Bela Vista, perdemos o último ônibus, conseguimos a carona em um caminhão que quebrou no meio da subida da serra. No final, cheguei em casa depois das 22h e muitos colegas que moravam mais longe, ainda mais tarde. No outro dia, às 7h, todos já tinham que estar a postos para o trabalho.

Apesar das dificuldades, acabei me apaixonando pela profissão. Todo dia é uma experiência nova. O ACE dentro da comunidade é um pouco médico, psicólogo, engenheiro, pedreiro. Em 2006, participei da 13º Conferência Nacional de Saúde, em Brasília, como conselheira estadual do estado do Ceará. Acabei abraçando a luta dos ACEs na criação de associações e sindicatos. Hoje faço parte da diretoria da Associação de Agentes de Endemias da Serra de Ibiapaba, da Federação das Associações ACS e ACE do Ceará (Fedaacse), da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) e ao Sindicato dos Servidores Públicos Municipais de Tianguá (SISMUT).

É preciso trabalhar com amor”

Como muitos profissionais da área, tive problemas de saúde relacionado à utilização dos produtos pesticidas no combate ao mosquito da dengue. Em virtude disso, desde 2006, não pude mais atuar com a dengue. Então, decidi me aperfeiçoar em outras áreas como sorologia canina, raiva silvestre, reconhecimento geográfico, exame de barbeiro, carrapatos, piolhos. Sempre que tive oportunidade fiz cursos para me aperfeiçoar. Como ACE fazemos parte da história de muitas famílias da comunidade. Por essa razão, é preciso trabalhar com amor.

E pensar que tudo começou com aquele senhor que encontrei em 1998 naquela praça, enquanto chorava por não estar vendo uma saída naquele momento da minha vida. Ele foi um anjo em minha vida e mesmo depois de 24 anos ainda tenho esperança de encontrá-lo um dia!