Endereço: São Rafael / Rio Grande do Norte
Nasci em Natal, no Rio Grande do Norte, onde tinha maternidade, mas sempre moramos em São Rafael. Até hoje, não temos maternidade no município. A maternidade de referência, atualmente, fica na cidade de Mossoró e, a maioria das crianças, nascem lá. Além disso, não temos qualquer tipo de indústria, as poucas oportunidades profissionais estão nos pequenos comércios ou quando há algum concurso público da Prefeitura ou do Estado. Assim, como a maioria dos jovens da cidade, precisei deixar o município em busca de trabalho.
Outra questão que marcou muito a vida de São Rafael foi a construção da barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves. Por conta dessa obra que teve como objetivo trazer água para a região, nossa cidade foi submersa. Isso aconteceu em 1983, eu tinha apenas 10 anos, mas lembro da mudança para a nova São Rafael, uma cidade planejada. Apesar do investimento ter como objetivo melhorar a vida das pessoas em relação à seca e suas consequências, em uma circunstância como essa há a tristeza da perda das memórias e da identidade da comunidade.
Antes da barragem, as pessoas trabalhavam, principalmente, na agricultura familiar e na mineração de scheelita, um tipo de minério usado na indústria de computadores, monitores de TV, celulares e muitas outras coisas. Com a barragem, isso se perdeu. As pessoas receberam as casas, mas o projeto não deu a elas novas formas de trabalhar e se desenvolver. Sobre o abastecimento de água, mesmo com a barragem, ainda convivemos com a falta de água nas torneiras porque novos bairros foram surgindo e faltou investimento para abastecer as localidades fora do núcleo inicial planejado. Nos últimos anos essa situação melhorou um pouco, mas não se resolveu.
“Sempre tive certeza de que saúde era minha vocação e meu lugar”
Assim, a exemplo de outros jovens, deixei São Rafael e fui para Natal em busca de oportunidades profissionais. Na capital, trabalhei como auxiliar de enfermagem e, depois, como técnica de enfermagem porque investi em aperfeiçoamento. Sempre tive certeza de que saúde era minha vocação e o meu lugar. Apesar de saber das dificuldades de trabalho em São Rafael, precisei voltar para o município em 2015 por causa de um problema de saúde na família. Mas, em 2016, abriu o concurso para Agente Comunitário de Saúde (ACS). Eu prestei, passei e assumi a função em 2017. Fiquei muito feliz de poder atuar com saúde na cidade em que sempre vivi!
Trabalhar no setor privado, como eu estava acostumada, é diferente do público. O tempo e o caminho para que as coisas aconteçam não são os mesmos e eu precisei me adaptar. Eu queria fazer muitas coisas. Tive colegas que embarcaram comigo, outros que se sentiam incomodados com minha atuação e, em alguns momentos, enfrentei barreiras e críticas. Por exemplo, em minha área há pessoas hipertensas que são orientadas pelo médico a controlar a pressão. Para isso, precisam medir a pressão no período da manhã e da tarde. No entanto, muitas não tinham como ir à Unidade Básica de Saúde (UBS) duas vezes ao dia. Não tive dúvida, comprei com meu dinheiro um tensiometro digital que deixo cada dia disponível em uma das ruas que têm pacientes hipertensos. Assim, eles podem verificar a pressão sem ter que se deslocar. Criei o tensiometro itinerante. Mas muitos colegas criticaram minha atitude, dizendo que eu estava indo além do meu papel de ACS.
“Uma das iniciativas que considero importantes para as mulheres da comunidade é a sala de amamentação”
No setor público, cinco anos é pouco tempo, mas, com apoio de colegas que pensam como eu e que acreditam na voz do ACS, aliado ao diálogo que sempre estabeleço com a gestão local e com quem precisar para realizar projetos que considero que podem ajudar a comunidade, já consegui colocar em prática algumas ações. Uma das iniciativas que considero importante para as mulheres da comunidade é a sala de amamentação. Percebi a dificuldade que algumas mulheres tinham em amamentar, apesar de receberem todas as orientações de nossa Enfermagem. Decidi montar um espaço que pudesse acolher essas mães para ajudá-las na prática com a amamentação e outros cuidados com o bebê, como a forma correta de cuidar do umbigo ou de dar banho.
Pedi para utilizar uma das salas vazias de nossa UBS e me voluntariei para trabalhar no período da tarde nesse projeto. Hoje, o espaço já conta com berço, poltronas, ar-condicionado. Está faltando apenas chegar uma câmara fria que já foi comprada pela gestão municipal e será usada para armazenar leite materno de doadoras. Esse leite irá para a UTI Neonatal da Maternidade Escola Januário Cicco – UFRN, em Natal. A ideia de criar esse ponto de coleta veio quando percebi que da mesma forma que há mães que têm dificuldade para amamentar, têm aquelas com muito leite, mas que não sabem que podem doar e fazer diferença na vida de bebês prematuros.
Outro projeto foi elaborado como parte do Programa Hiperdia, que cadastra e acompanha os pacientes hipertensos e diabéticos. Nós fizemos uma horta onde plantamos morangos, tomates, pimentões, vários tipos de chás. Éramos quatro ACS nesse projeto e nos revezávamos nos cuidados da horta. A ideia era proporcionar aos pacientes atendidos pelo Programa Hiperdia, informações sobre como utilizar alimentos e plantas medicinais em prol de sua saúde. Infelizmente, durante a pandemia, arrancaram nossa horta sob o pretexto de limpar o quintal.
“Acredito que, muitas vezes, o preconceito é resultado da desinformação”
No início deste ano, presenciei uma situação que me entristeceu bastante. Um homem transgênero veio até nossa unidade para pegar remédios para um familiar. Percebi o olhar e as observações preconceituosos de um profissional da unidade. Fiquei muito incomodada com a situação. Já sofri preconceito de pessoas que subestimaram minha capacidade pelo simples fato de eu ser mulher. No dia seguinte fui conversar com a secretária de saúde de nosso município. Propus um trabalho de apoio à população LGBTQIA+ desenvolvido em várias etapas. O início seria oferecer qualificação para os profissionais da unidade em relação ao tema porque acredito que, muitas vezes, o preconceito é resultado da desinformação. Tive autorização para iniciar o projeto.
Primeiro, entrei em contato com a secretária de minorias e população LGBTQIA+, que é uma mulher transgênero, para conversar. Considerei a participação dela essencial porque por mais que eu ficasse sensível àquela situação de preconceito, ter o ponto de vista de alguém que está, de fato, no lugar dessa população faria toda a diferença. Fizemos uma reunião da qual participaram a secretária de minorias, a secretária de saúde, a coordenadora de minha unidade e eu. Depois, realizamos uma visita técnica em um ambulatório dedicado do público LGBTQIA+ que funciona em Natal. Também fomos conhecer um trabalho muito bonito voltado a esse tema realizado no município de Pendências.
A primeira ação do projeto foi oferecer qualificação aos profissionais de saúde de São Rafael. Do total de 100 profissionais do município, 34 aderiram. Alguns estavam engajados na causa e outros foram apenas para não levar falta naquele dia. No entanto, percebi que muitos desses últimos saíram da capacitação mais esclarecidos e mais críticos em relação ao preconceito. Depois da qualificação, a etapa seguinte foi oferecer atendimento psicológico.
Há famílias com adolescentes que se descobrem fora do padrão tradicional de gênero e necessitam de acolhimento. Nosso papel como profissional de saúde não é julgar, mas acolher e encaminhar para que os adolescentes não passem a fazer uso de hormônios por conta própria, que podem causar sérios danos a saúde, inclusive câncer. Já consegui ajudar duas famílias, com filhos adolescentes. Em uma delas, o adolescente sofria muito porque os pais não aceitavam. Com paciência e diálogo, consegui convencer a mãe e o adolescente a fazerem o acompanhamento psicológico. Espero que em breve possamos montar o ambulatório.
“Respondo que não se trata de romantismo, mas de respeito ao ser humano”
Atendo 189 famílias em minha área que é formada pelo Centro e parte do bairro José Pequeno. São pessoas que vivem da pesca e agricultura, com poucos recursos e precisam da assistência do governo. Costumo dizer que a ficha de consumo alimentar que preenchemos não reflete a triste realidade das pessoas da região. O inquérito que fazemos é auto declarável, ou seja, perguntamos e as pessoas respondem. Em uma ocasião, cheguei à casa de uma família e vi que não havia nada para comer no fogão. Quando perguntei sobre a alimentação do filho, a mãe respondeu que ele fazia as três refeições diárias. Mas eu estava percebendo a situação de penúria da família. Só que as vezes é difícil aceitar e falar que o filho está passando fome.
Já ouvi de pessoas que sou romântica. Respondo que não se trata de romantismo, mas de respeito ao ser humano. Trato as pessoas como gostaria de ser tratada e com isso construí uma relação de confiança muito grande com as famílias que atendo. Lidamos com situações que vão desde o controle da hipertensão e do diabetes e vacinas até casos extremos que envolvem violência doméstica, abuso sexual de crianças e gravidez na adolescência. Nem sempre conseguimos a melhor solução para tudo, mas eu sempre falo a verdade para as pessoas que atendo e acabo criando vínculo.
“A verdade é que sou nordestina e não desisto nunca!”
Desde o primeiro dia de trabalho, eu me apaixonei pela profissão. Somos, além de educadores sociais, mediadores entre a população e o poder publico. Por isso, acredito que os ACS precisam valorizar a profissão, buscando sempre o aperfeiçoamento. Agora, neste ano, estou fazendo faculdade de Agente de Saúde. É importante estudar para adquirir conhecimento. Isso nos coloca em posição de poder falar com propriedade sobre nossas ideias.
Além disso, é preciso ir atrás das coisas para resolver os problemas da comunidade ou proporcionar o melhor possível sempre. Eu digo que 80% do que podemos fazer está no querer. Claro que há os embates, a falta de estrutura e de recursos, mas dá para conseguir muita coisa. A verdade é que sou nordestina e não desisto nunca!