À beira da rodovia, Cocal de Telha, tornou-se celeiro fértil para a prostituição de adolescentes. O que fazer?

Nome: Ednalva Lopes Medeiros
Endereço: Cocal de Telha / Piauí

Comecei a trabalhar como Agente Comunitário de Saúde (ACS) em 2003, em Cocal de Telha, no Piauí. É uma cidade pacata e pequena, nossa população não chega a 5 mil habitantes, e há 18 anos, Cocal de Telha era ainda menor. Naquela época eram cerca de 4 mil habitantes no município. Apesar de eu ser filha de Cocal de Telha, foi somente como ACS que passei a conhecer a realidade de muitas pessoas que viviam aqui. Eu tinha 24 anos e foi um choque me deparar com o cenário de prostituição de meninas ainda adolescentes na microárea para a qual fui designada. Era uma região à beira da rodovia, onde os caminhoneiros paravam, principalmente, em busca de sexo.

Como ACS, eu pude ampliar meu olhar para a realidade de Cocal de Telha”

E lá estavam meninas com menos de 16 anos de idade, algumas com 14 anos, empurradas para aquela situação para sobreviver porque não enxergavam outra alternativa de trabalho. Muitas vezes, os próprios pais mandavam as filhas para fazer programas noturnos com os caminhoneiros. E atrelado a isso vinham casos de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e de gravidez precoce e indesejada. Tudo por falta de informação sobre os riscos que corriam e como se proteger. Percebi que como moradora, você vê o que acontece em sua casa, em sua rua, mas não tem um contato maior com o que acontece na comunidade. Como ACS, eu pude ampliar meu olhar para a realidade de Cocal de Telha.

Antes de ir a campo como ACS, passávamos por uma capacitação que nos dava informações sobre doenças. Além disso, estávamos iniciando um trabalho de planejamento familiar. Ao detectar os problemas de minha microárea, sugeri a equipe do Posto de Saúde da Família (PSF), o médico e a enfermeira, que levássemos palestras aos locais de prostituição para conscientizar as meninas sobre como prevenir gravidez, ISTs, entre outros temas. Argumentei até a equipe aceitar. Iniciamos as palestras nessa área de prostituição. Lembro que a primeira aconteceu perto do horário do almoço e, por esse motivo, tivemos também a participação de caminhoneiros que estavam pelo local.

Na palestra, mostramos imagens de nosso álbum seriado, que trata de diferentes temas de saúde, falamos da importância do uso do preservativo como forma de prevenir ISTs e do planejamento familiar. Foi triste ver a resistência e a mentalidade dos caminhoneiros que viam nas mulheres um objeto de uso sexual. Mas não desisti! Já as mulheres tiveram mais facilidade para relacionar o conteúdo das palestras com os problemas que elas ou colegas estavam passando. Perceberam que as informações eram reais e o que poderia acontecer se não fizessem sexo com preservativo ou se diante de sintomas de doenças não buscassem o tratamento adequado.

Com o tempo, fui ganhando a confiança dessas pessoas”

Mas mesmo tendo acesso a essas informações, muitas meninas se recusavam a pegar o preservativo e o anticoncepcional gratuito no posto porque para isso precisavam assinar um formulário. Elas não queriam que familiares e conhecidos soubessem sobre sua vida sexual e envolvimento na prostituição e temiam que ao ir ao posto e assinar um documento, esse fato chegasse aos ouvidos dessas pessoas. Por outro lado, esse controle do posto era necessário porque tínhamos que prestar contas do material utilizado. Pensei que precisava resolver esse impasse de alguma forma. Decidi pegar eu mesma o preservativo e o anticoncepcional, assinar o formulário, e distribuir de maneira discreta às mulheres nos locais de prostituição de minha microárea. Com isso, elas não precisavam retirar o preservativo e o anticoncepcional no posto e passaram a ter acesso a esses recursos.

Outro público eram as mulheres que tinham parceiros fixos que se recusavam a usar o preservativo. Principalmente em relação a essas mulheres, passei a conversar de maneira ainda mais firme sobre a necessidade da consulta com o médico ginecologista e realização do exame Papanicolau. Com o tempo, fui ganhando a confiança dessas pessoas. Essas mulheres sabiam que podiam contar comigo.

Todo esse trabalho de conscientização foi difícil, mas valeu muito a pena”

Em 2013, foi diagnosticado um caso de HIV/Aids em minha microárea. Era uma mulher jovem que estava em sua terceira gravidez e descobriu a doença durante a gestação. Sua mãe tinha um restaurante, que também era ponto de prostituição, com quartinhos utilizados para isso. A filha era uma das meninas que atuavam nesses quartinhos. Eu fiquei sabendo da situação dela porque a orientei a fazer exames na gestação. Quando os resultados chegaram, ela pediu para eu abrir e ler e lá estava positivo para HIV/Aids. Ela teve acompanhamento, o bebê nasceu e hoje é uma criança saudável. A mãe, no entanto, veio a óbito tempos depois. Esse caso acabou repercutindo na cidade e todos ficaram assustados.

Todo esse trabalho de conscientização foi difícil, mas valeu muito a pena. O cenário em Cocal de Telha foi mudando e hoje está completamente diferente. Atualmente, as pessoas não têm vergonha de pegar preservativo e anticoncepcional no posto. As mulheres sabem da importância e fazem o Papanicolau. A maioria das gravidezes é planejada. Quanto à prostituição, conseguimos afastar as adolescentes, em alguns casos, com a possibilidade de penalização dos pais. Temos o Conselho Tutelar como parceiro atuante, o que nos ajudou muito.

Para mim, ser ACS é ter um olhar clínico em relação a comunidade”

Outro trabalho foi o do combate à desnutrição de crianças. Comecei com o caso de uma criança desnutrida, com mãe alcoólatra e família desestruturada. Eu queria achar uma solução para essa criança e descobri que tínhamos outros casos. Em 2006 eram nove casos de desnutrição em nossa cidade. Iniciei um trabalho de conscientização e engajamento das mães, busquei apoio da Secretaria Municipal da Saúde, que cedeu insumos para que pudéssemos nutrir as crianças, e da Igreja local que cedeu o salão paroquial para as reuniões com as mães. Também pesávamos as crianças periodicamente para ver sua evolução e conseguimos tirar todas da situação de desnutrição.

Mais recentemente, na pandemia da Covid-19, tivemos no início 23 casos em Cacoal da Telha. Em 2020 e 2021, fiquei responsável pelas barreiras sanitárias e educativas. Atuei no controle das pessoas que entravam e saiam da cidade e na conscientização sobre as formas de contágio, vacinação, uso correto de máscaras, entre outros temas.

Para mim, ser ACS é ter um olhar clínico em relação a comunidade. Depois do diagnóstico dos problemas, precisamos propor soluções e partir para a ação. Quando vejo cada pequena ou grande vitória que conseguimos ao longo dessa jornada me sinto muito realizada. Claro que devemos ser remunerados de maneira justa e precisamos de dinheiro para viver com dignidade. Mas, certamente, para ser ACS é preciso ir além disso. É uma profissão que, de fato, exige o exercício do amor. Precisamos amar o próximo com a nós mesmos. Esse é o primeiro passo. Depois é fazer o bem, sem olhar a quem que o resultado vem!