Inquietação transformada em soluções para a comunidade

Nome: Henio Dantas Marques
Endereço: Serrinha / Bahia

Minha história como Agente Comunitário de Saúde (ACS) começou em 1996 quando em minha cidade, Serrinha, no interior da Bahia, divulgaram que haveria um concurso para a função. O edital não trazia muitos detalhes, mas informava que era para trabalhar com saúde na comunidade e que era preciso morar na região de atuação. Eu tinha 18 anos, estava me formando no colégio, queria trabalhar e saúde era uma área que me interessava por influência do meu pai. Com formação em enfermagem, ele sempre trabalhou em farmácia e era referência em assuntos de saúde na comunidade.  Eu era conhecido como “o filho do Hélio, enfermeiro” e cresci aprendendo sobre fórmulas e medicamentos com meu pai.

Na primeira etapa do concurso para ACS fiquei em 6º lugar na minha região. Foram chamados 8 candidatos para a segunda etapa na qual eu passei em 1º lugar. Um dia antes de saber que havia passado, eu tinha conseguido um emprego de cobrador de ônibus na linha Salvador/Barrocas, liguei para a Dona Margarida, da empresa, e avisei que não poderia iniciar no dia seguinte, que tinha passado no concurso público. Naquele tempo passar em concurso público era como ganhar um grande prêmio na loteria. Mesmo a Secretaria do Estado da Bahia (Sesab), informando que era um Programa de Agente Comunitário de Saúde, com verba do governo federal, que a continuidade da iniciativa dependia dos resultados, ainda assim, era uma ótima oportunidade para mim. Eu iria trabalhar com saúde e na comunidade onde morava.

“Esse menino vai dar trabalho”

Dois meses depois nos chamaram para o treinamento, que era bem básico e funcionava como uma roda de conversa. Foram duas semanas e na terceira pediram que fôssemos para a área cadastrar as famílias, registrando nome, endereço e documento. Mas não tínhamos farda, crachá, nada que nos identificasse como um ACS, funcionário da Secretaria. Por essa razão, era difícil obter informações. As pessoas não queriam fornecer número do documento. 

Na reunião seguinte, questionei e sugeri que a Prefeitura fizesse uma divulgação sobre nosso trabalho e o programa na cidade em rádios, com panfletagem na rua. Além disso, precisávamos de farda e crachá que nos identificassem para que as pessoas tivessem confiança em nos passar as informações. Também disse que precisávamos de mais informações sobre o programa porque éramos questionados pela comunidade. Foi quando a psicóloga que estava na reunião disse: “esse menino vai dar trabalho e benefício. Trabalho porque ele vai começar a cobrar e exigir o que é correto e benefício porque se  ele for atendido o programa vai dar certo”.

 O importante é que conseguimos o crachá da Prefeitura Municipal de Serrinha. Lembro como fiquei orgulhoso de usar o crachá. E a divulgação também aconteceu, realizada por um carro de som contratado pela Prefeitura.

“Decidi estudar por minha conta”

Mas eu tinha mais uma preocupação que era estar preparado para fornecer informações para as pessoas da comunidade. Então, decidi estudar por minha conta. Comecei a ler sobre tuberculose, hanseníase, a importância de lavar as mãos na prevenção de várias doenças. Escolhia um tema por mês para conversar e conscientizar a comunidade. 

As informações sobre lavagem correta das mãos foram as que mais surtiram efeito porque as pessoas perceberam resultados práticos. Elas me diziam que depois que incorporaram o hábito de higienizar as mãos com mais frequência, deixaram de ter dor de barriga e gripe, por exemplo. Essa foi minha atuação no primeiro ano como ACS e, com essas iniciativas, conquistei espaço na comunidade.

“Tenha um olhar clínico para a casa da criança”

Foi só no ano seguinte que chegaram as balanças para pesar as crianças de 0 a 4 anos. Essa atividade facilitou cadastrar as famílias. Todo mundo queria pesar os filhos. Era uma balança de mão, com um gancho que deveria ser pendurado nos telhados das casas. No entanto, os telhados eram muito altos e o que acontecia na prática era que tínhamos que segurar a balança no braço e colocar a criança. Eu ganhei duas hérnias nas costas e a maioria dos meus colegas também ficou com alguma sequela na coluna devido o peso dessa balança. 

Mas o fato é que tinha muita criança com baixo peso. Nós avaliávamos o peso por meio de um gráfico, para o qual recebemos treinamento. Quando isso acontecia, o caso era encaminhado para a enfermeira instrutora. Foi quando aprendi muito com a enfermeira Maria Eunice, uma pessoa muito especial. Ela dizia: “tenha um olhar clínico para a casa da criança que está com baixo peso. Antes de dizer que a criança precisa comer frutas, feijão, adentre a casa, olhe o quintal,  converse, descubra se a família tem trabalho, condições de se alimentar”. 

Descobri que muitos não tinham condições de ter uma alimentação adequada. Seguindo a filosofia de Maria Eunice, comecei a orientar na preparação dos alimentos que estavam disponíveis a cada família, com foco em higiene e na melhor preparação. E assim segui, também, com pessoas com hipertensão e diabetes, que eram muitas na comunidade.   Orientava as pessoas sobre  como conviver com a doença,  respeitando as limitações e a cultura local. Era muito difícil conseguir os remédios e isso me incomodava.

“Descobri que vizinhos viviam na precariedade”

Demorou mais de um ano, mas, finalmente, as fardas chegaram e ficamos muito empolgados. Também chegaram as vacinas e começamos a participar de campanhas de imunização. Lembro como estava feliz, de farda, em um sábado, no colégio onde as crianças seriam vacinadas.

Eu era muito jovem e antes de me tornar ACS não tinha consciência da situação real das pessoas da comunidade. Descobri que vizinhos viviam na precariedade, passando necessidade e fome, além de cenários de violência familiar envolvendo, inclusive, crianças. Eu fazia anotações, que levava depois para as rodas de conversa que aconteciam com a enfermeira instrutora e os ACS. Mas esse encontro era apenas uma vez por mês e  eu não me contentava em ver tudo isso e não fazer nada. Há 25 anos, as questões colocadas eram peso, vacina, gestantes, hipertensão e diabetes. Nós identificávamos e mandávamos para o atendimento. No entanto, só tinha um posto de referência que era longe e nem sempre a pessoa conseguia atendimento. 

“Criei a Sexta-feira do Idoso”

Estava há um ano atuando como ACS, quando sai do plano das ideias para desenvolver o primeiro projeto  fora da rotina peso, hipertensão, diabetes, gestantes que acontecia na primeira quinzena de cada mês. Nos outros 15 dias, ficávamos soltos e, ao mesmo tempo, sob pressão porque as pessoas da comunidade precisavam de remédios e consultas médicas, e nós não tínhamos como resolver.

Tive a ideia de criar a Sexta-feira do Idoso. Fiz parceria com uma escola, que cedeu o espaço, e reunia os idosos para uma roda de conversa – falávamos de temas de saúde ao capitulo da novela. Depois para incentivar mais, começamos a servir mingau nos encontros. Comprávamos os ingredientes com nosso dinheiro e usávamos a cozinha da escola. O projeto acabou porque, em certo momento, a escola deixou de emprestar o espaço.

“O trabalho do ACS precisava ter mais visibilidade”

Comecei a reunir os ACS da minha região – éramos seis para dar conta de 3 mil famílias, no bairro de Cruzeiro – para caminhar pelas ruas juntos de farda para chamar atenção e conversar com os moradores para nos apresentar, falar de nosso trabalho e ficar à disposição para dúvidas. Nessas andanças, conheci um Agente de Endemias que tinha um grupo de capoeira e decidimos unir forcas. Começamos a divulgar o grupo para os estudantes depois da aula. Muitos começaram a assistir e alguns até a praticar capoeira. Nós aproveitávamos para falar de saúde e esporte. 

Também sugeri para a Secretaria Municipal da Saúde reunir uma vez por mês os 60 ACS de Serrinha para que pudéssemos conversar e trocar experiências e ideias. Minha sugestão foi acatada e passamos a nos reunir toda última quarta-feira do mês. Eu realmente achava que o trabalho do ACS precisava ter mais visibilidade porque nós estávamos fazendo diferença na vida das pessoas, mesmo com todas as dificuldades. Nesse aspecto, o marco foi a criação da Associação dos Agentes Comunitários da Cidade de Serrinha, em 2000. Nossa reivindicação inicial era ter material para trabalhar. Faltavam cartão de vacina, caneta, borracha, prancheta. Também queríamos uma balança de pé para pesar as crianças. Outro momento importante foi em 2007 quando deixamos de fazer parte de um programa para sermos funcionários municipais efetivos. Foi uma luta, mas valeu a pena.

“Acredito que com criatividade, podemos fazer muita coisa”

Nessa época, passei a entrar em contato com faculdades para conseguir cursos, palestras, o que fosse possível. Sempre conseguia alguma coisa. Tivemos ajuda em nossa formação da Universidade Estadual da Bahia (Uneb). Lembro de uma professora muito parceira que marcava palestras no período da tarde para os ACS. Hoje esse cenário mudou, temos a Universidade Aberta do Sistema Único de Saúde (Unasus) e já fiz muitos cursos online nessa plataforma. Também divulgo os cursos oferecidos para os colegas pelo grupo de WhatsApp que temos.

Acredito que com criatividade, podemos fazer muita coisa. Sou inquieto, fico atento aos problemas da comunidade e tento propor soluções. Quando veio a pandemia da Covid-19,  em 2020, comprei máscaras para me proteger, comecei a visitar as pessoas que estavam presas dentro de casa para conversar ou ajudar em algo que precisassem, como compras de supermercado. Os que tinham diagnóstico de Covid-19 se sentiam ainda mais sozinhos e discriminados. Se a pessoa permitia eu entrava na casa, caso não se sentisse segura, eu conversava do portão mesmo. 

“Eu vejo flores em você

Quando as vacinas chegaram, o Posto de Saúde da Família (PSF), que fica em uma pequena viela, na mesma rua onde moro, ficou parecendo um campo de batalha, as pessoas que vinham para atendimento não eram acolhidas, a vizinhança reclamava da aglomeração, o clima era pesado e até brigas aconteciam. Primeiro comecei a ir cedo até a fila para organizar e distribuir senhas. Também levava café e conversava com as pessoas que aguardavam atendimento. 

Mas eu precisava fazer mais. Percebi que poderia melhorar a aparência do lugar, tinha um trecho da rua onde as pessoas estavam jogando lixo, bem próximo ao posto. Limpei a rua e plantei flores, chás e outras plantas. Fui de casa em casa e conversei com os moradores sobre o projeto que batizei de Eu vejo flores em você. Não demorou muito para a vizinhança começar a regar e cuidar do jardim. O ambiente mais bonito teve influência no emocional dos moradores e das pessoas que buscavam atendimento no PSF, o clima ficou mais leve e amigável.

“Todos passaram a conhecer o estabelecimento como Bar do SUS”

Um dos desafios do ACS é engajar os homens nos cuidados com a saúde. Então pensei, se eles não vem até mim, eu vou dar um jeito de ir até eles. No meu caminho habitual tem um bar muito frequentado por homens. Achei que se passasse a frequentar esse bar, poderia conversar, criar vinculo e levar informações sobre saúde.

O primeiro passo foi me infiltrar na turma. Logo ganhei a confiança e a amizade de todos e passei, além de jogar sinuca, a orientar sobre saúde, quebrar mitos como o de que a vacina contra Covid-19 poderia causar impotência, distribuir preservativos para sexo seguro e ajudar com muitas outras questões do universo masculino. Resultado: todos passaram a conhecer o estabelecimento como Bar do SUS.

“Faltou por quê?”

Outra coisa que muito me incomoda é ver criança fora da escola. Por isso, inclui em minha rotina o projeto Faltou por quê? Costumo ir às escolas para ver se há problemas de falta, converso com crianças e adolescentes na rua, quando percebo que deveriam estar na aula, vou até as família quando é necessário. Os motivos da ausência nas aulas são inúmeros e vão desde a falta de sapato ou do material escolar até problemas de alcoolismo e  violência na família. 

“Venci um desafio pessoal, motivado pelo meu trabalho”

Também venci um desafio pessoal, motivado pelo meu trabalho como ACS. Aos 38 anos, com 1,85 m, cheguei a pesar 138 quilos. Além de estar interferindo negativamente em meu trabalho que exige mobilidade. O excesso de peso trazia muitos prejuízos a minha saúde.  Dormia mal, ficava cansado, tinha enxaqueca. Observei que as pessoas comentavam que eu falava de saúde e não me cuidava.  Além disso, comecei a ser motivo de chacota. O limite foi quando em uma conferência de saúde, em Brasília, recebi a farda e a camisa não entrou em mim. Vi todos os participantes de farda e só eu destoava da turma. Decidi mudar minha vida. Com orientação de um médico endocrinologista e um nutricionista, mudei a alimentação e comecei a me exercitar. Perdi 50 quilos em três anos e resgatei minha saúde.

A comunidade começou a  perceber minha mudança para melhor e a perguntar o que eu estava fazendo? Explicava que estava me cuidando, que era importante manter o peso adequado, sempre com ajuda de médico e nutricionista e a prática de atividade física. Aproveitava a minha experiência pessoal para fortalecer o meu trabalho de ACS de conscientização sobre a saúde. Muitas pessoas se empolgaram com meu exemplo e passaram a fazer caminhadas e a procura pela nutricionista  no PSF para informações sobre reeducação alimentar aumentou. Essa troca me ajudou a conquistar meu objetivo pessoal e minha experiência ajudou as pessoas. 

“Meu papel, como ACS, é deixar um legado”

Também gosto de compartilhar com os colegas, experiências que acho que podem ser replicadas. Uso as redes sociais para divulgar ações, ideias, materiais que avalio que sejam uteis para atuação do ACS. Criei o ZAP da Saúde por meio do qual divulgo diariamente informações e semanalmente, faço pelo Instagram uma live com um convidado para discutir temas relevantes para a comunidade. Acredito que meu papel, como ACS, é deixar um legado e não somente cumprir uma função.